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A genética dadisplasia da anca

Cão da Serra da Estrela

Ponta da Pinta

O mito da não hereditariedade

 

Nos últimos anos, tenho-me frequentemente deparado com textos sobre as causas da displasia da anca, quase todos eles assinados por criadores. Une-os uma ideia: não há, garantem, componente hereditária no problema, apenas factores ambientais. Afirmam-no peremptoriamente, contra todos os estudos académicos, contra o saber da ciência, baseando-se unicamente na sua própria experiência. E essa ideia, destituída de qualquer fundamento técnico, vai-se sedimentando e ganhando cada vez mais adeptos – dentre eles, os criadores de vão de escada, que não exercem qualquer controlo nem assumem nenhuma responsabilidade pela sua criação. Por outro lado, é induzida e encorajada por alguns sectores da indústria da alimentação animal (que produzem rações com suplementos benéficos para a saúde das articulações - os quais, no entanto, perdem parte das suas propriedades durante o processo de fabrico a altas temperaturas). Quero acreditar que os autores desses textos são movidos pelas melhores intenções, as de criar (e ajudar a criar) cachorros saudáveis, proporcionando-lhes um início de vida que minimize os riscos deles virem a adquirir displasias. Esse princípio é absolutamente correcto, porque, está comprovado, factores como a alimentação, o peso e o exercício físico concorrem para despoletar ou inibir o surgimento do problema. Mas a origem não é essa.

 

Os criadores que advogam essa ideia não têm, seguramente, os mais rudimentares conhecimentos de genética. Fizeram acasalar exemplares saudáveis, alguma da prole teve displasia, e, incapazes de interpretar cientificamente esses resultados, atribuem-nos a causas externas. Concentraram depois os seus esforços em reduzir ao máximo a pressão ambiental negativa (proporcionando aos cachorros um programa alimentar regrado e de boa qualidade, eliminando piso escorregadio, restringindo a actividade física) e conseguiram criar cachorros com ancas melhores. Em nenhum desses textos se refere se os acasalamentos subsequentes foram repetições dos anteriores ou efectuados com outros exemplares, das mesmas ou de outras linhagens. Não há mais dados que suportem a alegação. Além disso, esta teoria, que advém meramente da observação empírica, não oferece resposta para uma questão concreta – o porquê de, na mesma ninhada, poderem existir irmãos, criados durante vários meses exactamente nas mesmas condições, alguns dos quais com ancas normais, outros altamente displásicos. Nem todos tiveram essa experiência. Eu tive-a, no início do meu trabalho de criação, apesar de sempre ter realizado despistes e consequente selecção de todos os meus exemplares. Não encontrando na pressão ambiental a explicação para essa ocorrência, percebi que era fundamental iniciar-me no estudo da genética. Qualquer criador sério deverá fazê-lo, porque sem esse conhecimento a sua criação será sempre fortuita e dependente da sorte.

 

A origem genética

A displasia da anca é um problema multifactorial, poligénico (ou seja, envolvendo um elevado número de genes), que poderá ser condicionado por factores ambientais. Como qualquer ser vivo, os cães têm um par de cópias de cada gene, cada uma herdada de cada progenitor, podendo essas cópias, designadas alelos, ser iguais (sendo o animal homozigótico) ou diferentes (heterozigótico). Entre cada par de alelos diferentes pode haver uma relação simples de dominância ou recessividade (em que o alelo dominante se impõe e marca a característica física ou temperamental que lhe é relativa) ou outro tipo de relações, em que o alelo recessivo também se expressa, limitando em maior ou menor grau a influência do dominante. No caso de genes cuja relação é de simples dominância-recessividade, o alelo recessivo só se manifesta se existir em duplicado. É por essa razão que a displasia da anca, motivada por uma quantidade grande mas indeterminada de alelos recessivos, pode afectar alguma da prole de dois exemplares com ancas normais. Quando tal acontece, significa que ambos são portadores de alelos recessivos iguais, causadores da displasia. Nesse caso, tendo cada reprodutor, em cada par de genes que determinam a configuração das ancas,  um alelo dominante (que codifica para ancas normais) e um recessivo (ancas displásicas), a probabilidade de cada cachorro ser displásico é de 25% (tal como será provável que 25% da ninhada o seja). Da mesma forma, as probabilidades ditam que outros 25% só herdem alelos dominantes, de ambos os pais, e que os restantes 50% tenham alelos dominantes e recessivos, como os seus progenitores. Nestes dois casos, os cachorros não terão displasia – mas enquanto os do primeiro, homozigóticos de alelos dominantes, só terão esses alelos para transmitir aos seus filhos, os quais terão todos ancas normais, os do segundo poderão passar alelos recessivos a alguma da sua prole.

 

Na verdade, a situação é muito mais complexa do que isto, por estar envolvida uma grande quantidade de genes/pares de alelos, e as possíveis combinações de pares herdados serem muito numerosas. Todavia, a noção elementar de que cachorros displásicos são filhos de exemplares portadores de alelos de displasia é fundamental para o melhoramento dum programa de criação dum criador consciencioso, que a terá em conta para futuras opções de acasalamento mais informadas e controladas. Um auxiliar precioso é o diagnóstico precoce do problema, a partir das 16 semanas de vida: o PennHIP é um exame radiográfico em três posições diferentes, que permite medir o grau de distracção da anca do cachorro (ou seja, o espaço máximo existente entre o acetábulo e a cabeça do fémur) e avaliar a probabilidade dele vir a desenvolver displasia da anca. Conseguindo que os cachorros que cria sejam radiografados cedo, o criador poderá obter informação preciosa para as suas próximas opções de acasalamentos. Um ou dois cachorros com más ancas, duma ninhada de doze, indicam que os seus pais são portadores e passam muitos alelos de displasia, pelo que a opção de voltar a utilizar um ou outro na criação deverá ser muito ponderada.

 

Por outro lado, toda a informação que se conseguir recolher de outros familiares, que não apenas os filhos, é igualmente importante. Se um cão com ancas normais mas portador de muitos alelos que codificam para displasia acasalar com uma cadela que não tenha esses alelos (e que, por conseguinte, não transmita displasia), a prole será toda normal. No entanto, se um dos progenitores desse cão for displásico, então saberemos que ele herdou alguns alelos recessivos que poderão ser transmitidos à descendência. Também a existência dum avô, dum irmão ou dum neto com displasia da anca deverá suscitar ponderação, devido à probabilidade do cão ser portador de alguns alelos recessivos.

Quadro de probabilidades. Cada um destes progenitores possui um alelo dominante (chamemos-lhe "D", ancas normais) e um recessivo ("d", displasia). Cerca de 50% de ninhada deverá herdar um par de alelos diferentes, Dd, como os pais; 25% não terão alelos de displasia (DD), 25% serão displásicos (dd).

Pedigree genético. Os quadrados representam machos, os círculos fêmeas. Os cães assinalados a vermelho têm displasia. A cadela a amarelo é filha de dois cães com ancas normais mas a sua avó paterna, um tio e um irmão têm displasia. Ela acasalou com o cão a verde, cujo pai tem displasia. O casal amarelo/verde, ambos com ancas normais mas portadores de alelos que codificam para displasia, têm oito filhos, três dos quais com displasia - número próximo da estimada probabilidade de 25% de prole displásica.

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